domingo, 22 de março de 2009

UM DEUS QUE RESPONDE

“- Você é o Oráculo?

- Bingo. Não era bem o que esperava, não é?”

(Do filme “Matrix”, 1999)

 

            Ao que parece, a origem de todos os deuses e religiões reside na existência do inexplicável. Basta um pequeno fenômeno para o qual não se encontre explicação para despertar a inquietude humana, seja por medo ou curiosidade, e a necessidade de encontrar alguma forma de lidar com ele.

            Nas últimas décadas, e cada vez mais, a ciência vem substituindo as outras formas de lidar com o problema, o “conhecimento divino” é gradativamente substituído pelo “conhecimento humano”. Mas mesmo que os exorcismos sejam substituídos por tomografias computadorizadas no tratamento de um louco, essas novas tecnologias mantêm a mesma aura de mistério que sempre existiu para a maioria das pessoas. As pessoas, em geral, entendem tanto de ciência quanto de magia. Apenas foram levadas a acreditar, pelos mais diversos motivos, em que a primeira funciona melhor do que a segunda. Com a crença, veio a efetividade, ou de que forma uma pílula contendo farinha (placebo) poderia funcionar?

            Podemos afirmar que a ciência é, em certo aspecto, o novo deus para a grande maioria das pessoas, pois é ela quem traz as respostas para o desconhecido, e para como devem ser feitas as coisas. A questão que eu gostaria de tratar, neste momento, é a grande diferença entre este novo deus e os antigos. Enquanto em uma reza não se obtém uma resposta (pelo menos não uma clara e imediata), as consultas a este novo deus trazem resultados, e com a Internet, resultados cada vez mais fáceis de obter.

            Neste ponto, os sites de busca se tornaram o novo e mais aceitos oráculos de todos os tempos. E, com toda uma geração a lhe servir como seguidores, podemos tomar o mais utilizado sistema de busca como o “novo deus”, então vida longa ao “Deus Google”. Talvez um deus que jamais será onipotente, que demore um pouco pra ser onipresente, mas que se aproxima bastante da onisciência.

            A idéia, é claro, não é minha. Thomas L. Friedman (2003), um colunista do “The New York Times” a popularizou em um artigo neste jornal, e muita gente já pensou e escreveu sobre a idéia, mas e quanto aos efeitos que esse novo deus traz (e pode trazer, visto que é um deus em construção, porque não pode ser acessado a qualquer momento, falta a conexão a qualquer momento e em qualquer lugar) à personalidade de seus adeptos? Como é, talvez pela primeira vez na história, obter fácil acesso a todo o tipo de conhecimento produzido pela humanidade, a respostas para todas as dúvidas (ou ao menos a boa parte, e a cada dia mais)?

            A primeira, e mais óbvia resposta é a sensação de que a memória não é mais de grande utilidade, o que torna todo o sistema de ensino questionável. A necessidade de guardar um conhecimento é substituída pela capacidade de obtê-lo, de forma confiável e satisfatória. “Deus Google” também exige algo de seus seguidores, em troca de seu conhecimento ele exige conhecimento operacional. Um leigo em sistemas de busca na Rede dificilmente achará tantas respostas quanto um “iniciado”, e com a quantidade de informações de todo o tipo, alguém pode acabar lendo um texto irônico sobre um assunto e tomando-o como verdade. Entretanto, a própria Internet fornece o poder de adquirir o conhecimento necessário para questionar a informação incorreta. O refinamento dos serviços de busca pode solucionar isso um dia, potencializando ainda mais o seu aspecto “divino”, mas por enquanto ainda é necessário saber como filtrar a informação.

            Um aspecto interessante é que as respostas são, muitas vezes, mais engrandecedoras[1] do que o esperado. Uma busca sobre como fritar batatas pode resultar em uma receita muito mais elaborada, que não estava nos planos, mas pode ser muito bem-vinda. Nesse ponto, posso afirmar que, de um certo modo, “Deus Google” incentiva a criatividade, pois amplia o universo com o qual a pessoa estava habituada a lidar. Alguém que acabe se acostumando com isso saberá que sempre existirão outras formas não pensadas anteriormente, criando uma certa flexibilidade mental maior.

            Esta “flexibilidade” é reforçada pelo fato de “Deus Google” não dar simplesmente uma única resposta, mas diversas, e o critério para a seleção de qual é a mais adequada cabe ao usuário/seguidor. Pergunte sobre a política dos EUA, e você terá informações de todo o tipo de gente, desde blogs pessoais até sites de instituições famosas, desde o mais ferrenho defensor até seu opositor, passando por todos os níveis de uma escala. Se parar para ler algumas dessas diferentes opiniões, e contextualizá-las, e fizer isso com freqüência, teremos um ser humano muito mais apto a lidar com diferenças culturais e de opinião. Ainda que escolha uma das respostas, terá lidado e conhecido muitas outras, muitas em oposição. É uma mudança e tanto para quem estiver acostumado a agarrar-se ferrenhamente a uma idéia única, a um pensamento rígido. Passa muito mais por um “isto parece certo para o que eu acredito”, ou “essa resposta é melhor para esta situação” do que por um “isto é certo e aquilo errado”.

Por outro lado, toda essa facilidade de acesso à informação e ao conhecimento pode também levar a uma ausência de reflexão, para que precisar ter uma opinião se eu posso procurar uma na Internet? Talvez uma praticidade tão excessiva acabe por nos tornar cada vez mais preguiçosos e dependentes.

            Com o “Deus Google”, ocorre uma subversão dos papéis no universo. Antes era “deus criou o homem e o mundo”, “ele tudo sabe e eu nada sei”, “eu posso pedir respostas mas cabe a ele a decisão final”. Agora é  “o homem criou deus – que se vale de todo conhecimento produzido pelo homem para dar suas respostas”, “ele tudo sabe, e eu posso ter todo seu conhecimento na palma da mão – ou na ponta dos dedos”, “eu peço respostas, ele me dá várias mas eu preciso julgar qual a melhor”. Um deus acessível, mas liberal, não autoritário. O julgamento final cabe ao homem, e não mais a deus. E com isto, este homem começa a se sentir um deus?



[1] Lévy classifica duas atitudes de comportamento básicas da navegação na Internet: a caçada e a pilhagem. A caçada é a busca direta por uma informação precisa, a qual tentamos obter rapidamente. A pilhagem é mais interessante, ao buscar por um assunto mais amplo, ou estando a pessoa mais disposta a lidar com outros assuntos, ela acaba por vaguear, deixando-se levar pela rede de hiperlinks, chegando a lugares muito distantes do que imaginava inicialmente. Este comportamento é o que possibilita uma certa ampliação cultural. Quase todo mundo já passou por isso, começou buscando algo como “mitologia nórdica” e acabou lendo páginas sobre “teatro grego”, por exemplo, e muitas vezes se interessando por estes outros assuntos. Lévy compara este comportamento a um passeio por uma espécie de biblioteca-discoteca ilustrada, interativa, lúdica e cujo acervo se altera e se amplia a todo o momento, na companhia de todo o tipo de pessoas. (Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 85-91)

 

Postado e escrito por Raoni Pereira

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