Vivemos no presente um mundo veloz, onde a estabilidade é um desejo como outro qualquer: realizado com o talão de cheques e substituído na próxima liquidação. Nascemos sob os efeitos da globalização, somos interconectados, vivemos aqui, mas virtualmente próximos de qualquer lugar ou pessoa no globo terrestre. Não há valores permanentes e toda identidade é fragmentada. O poder é exercido sem fronteiras pelas organizações, e nada é realmente previsível. Diante de tantas diferenças entre os dias de hoje e o período histórico denominado de Modernidade, não se pode crer que as subjetividades engendradas antes das Grandes Guerras permaneçam as mesmas até o agora. Deste modo é sob esse cenário que este texto pretende traçar uma reflexão acerca das relações existentes entre o homem e seu tempo, neste caso entre os sujeitos e a contemporaneidade.
A subjetividade
O construto subjetividade não é nada consensual, assim como todo construto teórico. A circunscrição de seu significado é interdisciplinar e varia de acordo com o referencial adotado (Oliveira, 2006). Na esfera das ciências humanas uma concepção possível de subjetividade vincula seu significado à constituição do sujeito a partir de suas relações sócio-históricas e culturais, e que de uma forma ou de outra circunscrevem zonas de determinação no espaço de experiência do sujeito e em suas dimensões de interação.
A subjetividade assim considerada pressupõe o sujeito como “portador” de um conteúdo subjetivo (não adotando aqui uma dicotomia entre sujeito e objeto) que pode variar de acordo com os tipos de relações e trajetórias vividas em um espaço de experiência próprio da existência limitada deste sujeito. Não há então subjetividade que não seja relacional, que não esteja permeada por todas as dimensões dadas e vividas durante a existência do sujeito. Assim, em épocas diferentes a subjetividade individual emerge e é vivida dialeticamente de formas distintas (Rey, 2003). As dimensões históricas, culturais e locais experimentadas pelo homem nascido na idade média certamente diferem daquelas existentes para um homem nascido em qualquer outra época delimitada.
A questão que se pretende aqui refletir indaga sobre as singularidades da subjetividade que se configura em nossos dias. Ou seja, de que modo emerge em nossa época a relação entre o que é singular ao sujeito – sua dimensão afetiva, seus sentidos subjetivos – e o que é socialmente compartilhado – significados, símbolos, mitos e cultura, etc.?
A pós-modernidade
O período histórico que se tem denominado como pós-modernidade tem suas características iniciais situadas no pós-Segunda Guerra, onde inúmeras transformações nos campos da política, economia e ciência desencadearam uma crise de valores sociais e culturais: “o desencanto que se instala na cultura é acompanhado da crise de conceitos fundamentais ao pensamento moderno, tais como ‘Verdade’, ‘Razão’, ‘Legitimidade’, ‘Universalidade’, ‘Sujeito’, ‘Progresso’, etc.” (CHEVITARESE, 2001 apud Oliveira, 2006, p. 16). Este conjunto de transformações que compreende a contemporaneidade tem sido estudado desde os anos 60, quando surgem as teorias pós-modernas nos campos da arte, da literatura e mais tarde no meio acadêmico com o livro A condição pós-moderna (1979), de Jean-François Lyotard (LEITÃO; NICOLACI-DA-COSTA, 2003).
Há dois eixos de ênfase interpretativa a respeito destas transformações, por um lado a discussão se dá a respeito das condições contemporâneas de produção de conhecimento e por outro se envereda pelas condições de produção da ordem capitalista contemporânea. De modo geral o debate da pós-modernidade em torno do primeiro eixo entende as transformações deste período como decorrentes da utilização maciça das tecnologias da informática e do acesso cada vez mais amplo e rápido ao crescente contingente de informações disponíveis. Segundo Vattimo (1998a , 1998b apud LEITÃO; NICOLACI-DA-COSTA, 2003) as tecnologias da informação estão na base do rompimento com o modo moderno de produção de conhecimento. Já na outra perspectiva a pós-modernidade decorre de um modelo de capitalismo tardio ou neoliberal onde o modo de produção está organizado em torno do consumo de bens materiais, de informação e de cultura. Para Bauman:
“todas as sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza a sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da capacidade de produção. Já na Pós-modernidade, a organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo de consumir do que pelo que cada um de seus membros produz.” (1997, 1998 apud LEITÃO; NICOLACI-DA-COSTA, 2003):
Considerando que a primeira perspectiva pode facilmente ser incorporada pela segunda, na media em que se pode argumentar com Jamenson (1991) que a tecnologia é conseqüência da expansão e da organização social em torno do consumo, adotamos como referencial para delinear algumas características da pós-modernidade, a perspectiva que entende este conjunto de transformações como intimamente ligado ao desenrolar histórico do capitalismo.
Assim, são características pós-modernas: a globalização, as comunicações eletrônicas, a mobilidade, a flexibilidade, a fluidez, a relativização, os pequenos relatos, a fragmentação, as rupturas de fronteiras e barreiras, as fusões, o curto prazo, o imediatismo, a descentralização e extraterritorialidade do poder, a imprevisibilidade e o consumo. Eagleton (1996) resume alguns dos atributos distintivos do período moderno e pós-moderno:
“Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. (...) vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e à coerência de identidades” (Eagleton, 1996 Apud NICOLACI-DA-COSTA, 2004)
Na era moderna o capitalismo conheceu sua forma baseada na produção e nas teorias econômicas liberais. A revolução industrial e técno-cientifica trouxe em seu bojo um mundo de estabilidade, visto a através de discursos científicos unificados e universalizados. Além disso, para garantir a sustentabilidade das necessidades produtivas do capital industrial surgem técnicas denominadas por Foucault (1997) de disciplinares, originadas a partir do séc. XVIII. Tais técnicas garantiam por um intricado sistema de docilização dos corpos, baseado na disciplina e na normalização de comportamentos, a força de trabalho necessária para manter a produtividade. Com o advento do capitalismo neoliberal, e a mudança de foco da produção para o consumo, surgem novas formas de exercício do poder capital, agora baseadas na vigilância permanente (Foucault, 1997). A mudança nas formas de poder relaciona-se à mutação do capitalismo, que deixa de ser de produção e concentração e passa a vender serviços e ações.
Deste modo, a primazia do econômico sobre o social operou sucessivas mudanças “primeiro do ‘ser’ para o ‘ter’, em seguida do ‘ter’ para o ‘parecer-ter’” (DUPAS, 2001 apud Oliveira, 2006, p.32). Com a expansão e o poder dos meios de comunicação, cria-se o fenômeno de industrialização da subjetividade produzida de forma social “de cima para baixo, para os supostos indivíduos, que consomem os produtos e as técnicas de subjetivação como qualquer outro produto” (BENEDIKT, 2003, p. 107, apud Oliveira 2006, p. 52). O poder associado à produção capitalista está presente a todo o momento na pós-modernidade, o que torna a contemporaneidade um lugar onde desponta uma liberdade controlada, que ao mesmo tempo em que proporciona infinitas possibilidades para a trama social, canaliza esses fluxos a favor do consumo, criando uma subjetividade permeada pela ordem capitalista.
A subjetividade na pós-modernidade
Diante das necessidades capitalistas neoliberais foi preciso forjar um novo homem, um ser humano que atendesse as necessidades desde modo de organização social, cultural e econômico. Assim como na era moderna havia determinadas relações entre sujeito e dimensões sociais capazes de engendrar uma subjetividade peculiar àquele tempo, na pós-modernidade por meio de modos de subjetivação característicos ergue-se o indivíduo, ou melhor, um ser humano perpassado por uma subjetividade individualizada (Mancebo, 2002).
A categoria indivíduo é a representação básica da subjetividade pós-moderna. Ela se caracteriza por uma exacerbação da “liberdade” individual, que desconsidera as condições concretas disponíveis para o seu exercício e é o “valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria a cerca de todas as normas e resoluções supra-individuais devem ser medidas” (Bauman, 1998, p. 9). Se na modernidade a humanidade abria mão de certo grau de liberdade em troca de uma segurança relativa, no pós-moderno ela prefere a liberdade em detrimento a qualquer estabilidade.
A subjetividade individualizada implica em profundas transformações na forma de relação entre os sujeitos. Os princípios comunitários, por exemplo, atravessam uma profunda crise, pois se ao longo da modernidade as práticas coletivas e classistas ganharam fôlego, diante do estímulo neoliberal de competição elas se afogam. Outra característica é a crescente valorização da interioridade e a busca de felicidade individual, em detrimento ao bem coletivo e ao outro (Mancebo, 2002).
Diante destas características gerais trazemos como exemplo as relações de parentesco que se estabelecem entre os sujeitos pós-modernos. Os valores da modernidade em contraposição aos medievais trouxeram à tona um novo modelo de organização familiar que costuma ser chamado de família burguesa ou família nuclear - restrito ao núcleo pai-mãe-filho(s):
Nesta família, mãe e pai têm funções bem definidas: a ela caberia o cuidado com a casa, o marido e os filhos; a ele, o sustento da família através do trabalho remunerado. Os papéis públicos seriam associados aos homens, enquanto os papéis privados estariam associados a mulheres e crianças, ao mundo do trabalho doméstico e à satisfação das necessidades afetivas da família (VAITSMAN, 1994, p. 16b apud Oliveira, 2006, p. 57).
Na modernidade, a família organizava-se de forma patriarcal, hierarquizada e transpessoal. Predominava a regra do “até que a morte nos separe”, admitindo-se o sacrifício da felicidade pessoal em nome da manutenção do vínculo de casamento, a família era vista também como unidade de produção, vigorando os laços patrimoniais. A sociedade moderna traz um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário, passando o afeto para o lugar de mola propulsora. Deixando a família de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo, avançando para uma compreensão sócio-afetiva, surgem novas representações sociais, novos arranjos familiares. O casamento deixa de ser ponto referencial necessário para a proteção e o desenvolvimento e torna-se um espaço privilegiado para que os humanos embalem os sonhos de “completude”.
Na pós-modernidade este modelo está em crise. É crescente o número de casais separados ou divorciados, madrastas e padrastos, mães e pais que criam filhos sem a ajuda de um cônjuge. A mulher, não mais confinada às atividades domésticas, conquista um espaço cada vez maior no mercado de trabalho – e culpa-se por não dedicar aos filhos a atenção que julga dever. As famílias constituem-se de forma mais ampla, recombinando laços de parentesco, incluindo novos parceiros (marido da mãe/esposa do pai) e filhos e irmãos agregados. Apesar do grande número de separações, os casamentos e recasamentos ainda prevalecem. Conseqüentemente, as relações familiares contemporâneas tomam contornos tentaculares.
A sociedade pós-moderna aponta para uma transformação radical nas condições da vida, que acentuou os sentimentos de insegurança e as incertezas quanto ao futuro. Assim, colocar objetivos distantes parece não ser a atitude mais atraente: “qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida (...)” (BAUMAN, 2001, p.187). Laços e parcerias humanos caminham neste tempo dentro da lógica de qualquer outro objeto de consumo: compromissos do tipo “até que a morte nos separe” hoje são contratos do tipo “enquanto durar a satisfação”, transitórios por definição e passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria (BAUMAN, 2001, p.187). Na pós-modernidade a satisfação individual é a regra maior, tornando as relações duradouras algo inviável diante de um mundo onde a cada esquina um novo produto – ou relacionamento – pede para ser consumido.
Conclusão
Apesar dos relatos acima, não se deve tomar uma posição pessimista. A história mostra que nas relações entre a subjetividade e seu tempo, aquela acaba sempre por criar rupturas. Os sujeitos estão para além de meros indivíduos, seres passivos e subjugados por sua ordem social. Neste sentido é sempre bom lembrar que a sociedade não é um mero agrupamento de indivíduos, que não há dicotomia entre indivíduo e sociedade e sim relações entre sujeitos. A ordem social é fruto das relações que se estabelecem entre os sujeitos e pode, portanto, a qualquer momento ser pensada, modificada e reestruturada.
Referências Bibliográficas
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JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1991.
LEITAO, Carla Faria; NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. A Psicologia no novo contexto mundial. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 8, n. 3, 2003. Disponível em:
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OLIVERA, alex vilela. Pós-Modernidade e sofrimento psíquico: análise feita a partir de depoimentos de psicólogos clínicos, 2006. disponível em <>. Acesso em: 20 Nov. 2007
Postado por Ítalo mazoni