quarta-feira, 27 de maio de 2009

Cibercultura - Cap 4 (Monografia de graduação de Raoni Pereira)

4 UM NOVO EU

 

“Sob a bandeira dum regresso a Freud, Lacan insistia que o ego é uma ilusão. Com isto ele estabeleceu a ponte entre a psicanálise e a tentativa pós-moderna de retratar o eu como um domínio discursivo, e não uma coisa real ou uma estrutura permanente da mente humana.” (Sherry Turkle. 1997, p. 263)

 

Se o ego é ilusório, a aparente experimentação de diferentes formas de  personalidade na Internet pode ser na verdade diferentes apresentações do Eu, da multiplicidade que habita em todos os seres humanos e que, na rede, podem apresentar-se de modos distintos. E isso não ocorre apenas na Internet, em muitos espaços no mundo físico estamos constantemente entrando e saindo de personagens, em cada ambiente e interação estamos representando papéis diferentes. A Internet apenas colabora para essa visão da identidade como múltipla, pois nela uma pessoa pode ser “muitos” mas continua sendo ela mesma.

A idéia de que o ego é uma multiplicidade de partes, fragmentos e conexões de desejo, ao invés de algo único e imutável já foi apresentada há algum tempo ao mundo por autores como Lacan, Gilles Deleuze, e Félix Guattari, mas o ciberespaço proporciona a vivência dessa multiplicidade de uma forma mais próxima, ajudando ao reconhecimento desta característica. Turkle (2004), através da análise de comportamentos de alguns usuários da Rede, percebeu que a vida “virtual” pode ajudar as pessoas a se situarem no espaço entre as “várias identidades” e ainda se sentirem integradas, a verem a multiplicidade e ainda se sentirem uma unidade. O próprio sistema Windows, com seus programas rodando ao mesmo tempo em janelas que podem ser alternadas, serve como uma metáfora deste ego distribuído, que existe em muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo e “o ciberespaço, entretanto, traduz essa metáfora em uma experiência viva de alternância” (TURKLE, 2004).

A constituição da identidade (individual e coletiva) e formação da personalidade sempre foram de vital importância para o bem-estar e saúde mental do sujeito, sendo a base de significado social desde as primeiras sociedades humanas, mas conforme Castells (2003, p. 41) com a “desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições e enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras” deste período histórico em que vivemos, a identidade tem se tornado a principal (e às vezes única) fonte de significado para o sujeito, visto que “Cada vez mais, as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que são”.

No passado as pessoas eram mais ligadas a uma única postura/personalidade, porque eram mais próximas de comprometimentos sociais, como a comunidade e a família, possuindo poucas válvulas de escape, onde pudessem apresentar outros lados da sua psique. Hoje em dia, é até exigido que se tenha comportamentos diferentes em diferentes situações, e nesse sentido a Internet funciona como um importante laboratório.

É importante diferenciar as múltiplas identidades adotadas na Internet da desordem de personalidade múltipla, o mecanismo de defesa que por vezes é ativado em conseqüência de um trauma severo. Nas múltiplas identidades adotadas, não há uma dissociação entre uma identidade e outra, nem das identidades e o senso de si da pessoa, mas uma idéia de coletividade integrada (TURKLE, 2004). Conforme Turkle apud Tapscott (1999, p. 92-94), personalidade múltipla refere-se a autodestruição, o oposto do que ocorre quando pessoas usam identidades múltiplas na Internet, o que é visto como uma mudança positiva de conceito sobre a idéia que temos de personalidade única.

Na modernidade os lugares e papéis não estão mais definidos, devem ser buscados por cada um. Nesta busca, muitas vezes as pessoas apresentam um constante desejo de mudança, por vezes dificultada pelos mais diversos motivos no “mundo físico”, mas que pode ser rapidamente executada na Internet. Se está cansado da sua cara, você poderia cortar o cabelo no “mundo físico”, mas isso poderia implicar em sua namorada gostar menos de sua aparência, por exemplo. No mundo “virtual”, você simplesmente pode adotar uma nova foto para sua aparência no Orkut[1]. Pode parecer banal, mas uma vez que aquela foto é “você” no Orkut, é como as pessoas o vêem, trata-se de uma espécie de mudança de si mesmo.

A liberdade de “ser quem quiser” proporcionada pela Rede é tanta que várias pessoas[2]  que se sentem mais elas próprias quando estão “online” do que “offline”, embora isso possa parecer contraditório. Muitas vezes, este sentimento de proximidade não é como que estas pessoas pensam ser, mas com o que gostariam de ser. No ciberespaço, muitas vezes as pessoas encarnam o seu ideal do eu.

Porém, a Rede, em seu caráter de coletividade, entra em conflito direto com o tradicional individualismo ocidental, abalando a própria concepção de ser. Conforme o psicanalista social Barglow apud Castells (2003, p. 58-59), a mudança das tecnologias mecânicas para as tecnologias da informação está subvertendo o tradicional conceito de identidade individual baseado na soberania e auto-suficiência. Porém, como Castells aponta, não são somente os ocidentais individualistas que partilham dessa crise de identidade gerada pela globalização e conectividade, os orientais também dão sinais dessa crise. Touraine apud Castells (2003, p. 58) entende que, tanto que a defesa da personalidade e cultura do sujeito contra a lógica dos aparatos e mercados aparece como possível substituto da idéia de luta de classes.

            Para Bauman (1998, p. 155),

 

 

(…) atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade em se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso.

 

 

Ou seja, estamos aprendendo a nos tornar muitos, mas perdendo a estabilidade da noção de si, sem ter ao que se prender, visto que essas multiplicidades do ego são fluidas. Para Bauman (1998, p. 155), isto estaria nos revertendo

 

 

à central e mais dolorosa das ansiedades: a que se relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência de pontos de referência duradouros, fidedignos e sólidos que contribuiriam para tornar a identidade mais estável e segura.

 

 

            Penso que esta é uma área que permite muitos estudos a serem realizados pela psicologia. O reconhecimento desta nova concepção de si, a fragmentação de um ego único em uma multiplicidade estaria proporcionando uma melhoria no relacionamento consigo mesmo e com o mundo, ou pelo contrário, estaria deixando o sujeito à deriva, sem ter ao que se prender para definir a si mesmo e aos outros?



[1] Site de relacionamentos, que possibilita a criação de uma rede social com os contatos de uma pessoa, ajudando a manter relacionamentos e criar novos, em torno de “comunidades” (fóruns) sobre os mais diversos assuntos. Muito popular no Brasil, no momento em que este trabalho é redigido, com 64,57% de seus membros acessando deste país. (Disponível em: Acesso em: 11 set. 2006)

[2] Além da minha experiência pessoal de ter conversado com diversas pessoas que afirmaram isto ao longo do tempo, existem depoimentos em Turkle. (Cf. TURKLE, Sherry. A vida no ecrã: a identidade na era da Internet. Lisboa: Relógio D’água, 1997, p. 264)

Um comentário:

  1. tenho pensado em fazer um mestrado em Psicanálise e Campo Social sobra a experiência da cibercultura na sociedade contemporânea, a matéria me deu algumas coisas p pensar. Mas penso também talvez em a Empregada Doméstica e a Família Brasileira... poderia ser um outro tema bom na mesma área...

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