Estava assistindo a uma edição altamente recomendável do Roda Viva de fevereiro de 2009 (para que não sabe um programa de entrevistas da TVE não raramente de alto nível) onde o convidado do dia era o pensador pop esloveno, o psicanalista e marxista Slavoj Žižek (disponível na íntegra em: http://www.youtube.com/watch?v=ZFWILZmH5zg&feature=PlayList&p=3A55CE5A4563A2A7&index=0&playnext=1 ). A entrevista aborda temas muito interessantes a respeito do comportamento político mundial desde a queda do comunismo até o momento atual. Através de uma articulação entre teoria social e uma análise psicossocial e psicopatológica a partir do misto duma releitura politizada da psicanálise lacaniana e do marxismo. Quem perdeu o seminário apresentado aqui no Goëthe Institut por ele no ano passado pode encontrar neste video grande parte do conteúdo que foi abordado por ele em tal seminário.
Para Žižek o sujeito deste capitalismo recente não é alguém que não que vive num mundo pós-utópico depois da queda do Muro de Berlim e da falência quase geral do Comunismo. O sujeito ocidental pós-muro é aquele que a nível político repete obsessivamente comportamentos que de alguma maneira sabe serem insustentáveis, mas se afasta do peso das conseqüências até que elas sejam inevitáveis. Ele critica o capitalismo, critica o dinheiro ao mesmo tempo que se alia a ele e o perpetua em suas práticas cotidianas e em sua resignação indiferente. Seria este a seu ver comparável ao sujeito pós-traumático. Žižek propõe que pensemos na diferença entre uma mulher estuprada em duas sociedades quase que diamentralmente opostas: 1- uma sociedade pobre onde a violência é comum e após esse primeiro estupro se seguiriam outros e mais outros sem perspectiva alguma de melhora; 2- uma sociedade civil com aparelho de estado legitimado e forte disciplina social, quando esse estupro se seguiria de um afastamento desta experiência que a levaria a fantasmaticamente reproduzi-la. Grosso modo, percebe-se que o sujeito desse primeiro modelo de sociedade é aquele sujeito do acontecimento, que não fantasmatiza aquela experiência por ela ser real e se suceder dia após dia, se reproduzindo sistematicamente, e o sujeito naquela outra é o sujeito da Idéia, o sujeito Cartesiano, assujeitado a uma certa ordem que ao se reproduzir continuamente se reveste de valor Ideal. Essa segunda mulher vive, portanto, numa sociedade civil organizada onde este tipo de violência é sistematicamente repreendida, mas não por um poder que se exerce de um Ideal superior, e sim por que muitas das vezes em que aquilo potencialmento pudesse ter ocorrido, havia alguma forma contínua de poder da sociedade civil que a inibisse. Devido à organização social onde ela se encontra encaixada, ela se afasta da possibilidade real de que aquilo ocorra novamente, reproduzindo a experiência enquanto um fantasma, enquanto uma idéia, pois, ao contrário da outra que cotidianamente corre esse risco e basicamente o experiencia a nível real, aquela outra não, o real daquela experiência é suprimido pela sociedade. O próprio discurso de crítica ao racismo, por exemplo, teria se modificado das ferozes críticas de Martin Luther King à exploração cotidiana do negro à um discurso atual de tolerância à diversidade que na verdade camufla nada mais que a indiferença ao outro.
Os mecanismos de resignação, afastamento e indiferença estão cada vez mais entranhados em nosso cotidiano e, daí vem o motivo de postar algo como isso aqui, as novas tecnologias disponíveis podem no disponibilizar esse cinismo capitalista da maneira mais confortável, nos oferecendo pílulas de resignação a preços se não baixos, ao menos pagáveis. Não que as tecnologias não possam nos aproximar também do real e nos oferecer possibilidades de desconstrução de tal resignação, mas de modo geral o uso que se tem feito delas nem um pouco se aproxima desta possibilidade animadora. Quem nunca viu um site de donativos, nunca conheceu alguém que ligou para o Teleton ou Criança Esperança? Existe mais confortável do que se sentir mudando o mundo deitado num sofá, assistindo TV e fazendo uma ligação de telefone? A caridade, cada vez mais acessível e mais distante da experiência real da exclusão tem sido a solução encontrada por esse sujeito como descargo de consciência, como uma forma aceitável para si mesmo de afastar-se do problema cinicamente, sem enfrentá-lo de fato e questioná-lo em suas raízes. Lembro-me que a primeira frase que Žižek disse em seu seminário foi "We're doing too much", ou seja, estamos fazendo demais. Ele defende que mais do que nunca precisamos de teorias, precisamos pensar de forma rigorosa as atitiudes cotidianas e nosso envolvimento com o capitalismo.
Pensar sobre o cinismo do homem ocidental do presente me lembra também outro teórico pop, o Zygmunt Bauman, que lançou o livro Holocausto e Modernidade, onde compara a maquinalização da exclusão social no nazismo e nas sociedades capitalistas atuais. Ele chega à conclusão de que são mecanismos muito parecidos, pois fazem o sujeito distanciar-se das consequências reais de seus atos através da resignação causada pelo afastamento de tais consequências e convergência com valores que, teoricamente, embasariam suas atitudes. A sociedade moderna é tão complexamente estruturada que poucos de nós pensamos nas criancinhas chinesas que fabricam nossos tênis ou nas guerras que acontecem para que enchamos os tanques de nossos carros. Temos tão pouco tempo, tantos atrativos e queremos tanto nos fazer absorver em devaneios cínicos que realmente é difícil pensar naquilo que sempre esteve embaixo de nossos narizes.
PS: Já que ninguém postou hoje ainda, adiantei logo meu meu post de quarta-feira.
Por: Victor Martins (victormnmartins@gmail.com)
Mudar o mundo de quem?
ResponderExcluirNão tem diferença entre a criança que morre do outro lado do mundo ou do outro lado da rua da minha casa, a menos que eu me relacione com essa criança de alguma forma intima.
Comportamentos ‘altruístas’ são mantidos por regras que anunciam um reforço a longo prazo ou são conferidos a curto prazo pela comunidade na qual estou inserido. Mas que reforço eu terei em ajudar alguém do outro lado do mundo? Logo tais comportamentos que não produzem reforço imediato ou produzem o reforço a um prazo muito longo tendem a serem extintos.
Hoje sofro muito mais ao perder uma nota de 10 reais do que ao saber que milhares morreram por causa do capitalismo. Enquanto a perda dos 10 reais me afeta diretamente a morte de milhares me soa como um conto macabro.
Enquanto as contingências não me afetarem diretamente me mantenho no sofá e esperar uma ligação para o programa criança esperança é uma perspectiva muito otimista.
Acredito que a internet possibilita a formação de um contato intimo com uma comunidade carente que precisa de ajuda e a mesma reforçara os comportamentos ‘altruístas’. É claro que isso não é tão explorado, mas é uma possibilidade.
opa, vou assistir a essa entrevista depois, não sabia de sua existência
ResponderExcluirGostei muito das idéias desse cara...
ResponderExcluirTraz um excelente retrato de nossa sociedade.
Essa duplicidade no sujeito, que tem um visão crítica do capitalismo e ao mesmo tempo se alimenta dele, cinicamente, me parece bem evidente em qualquer canto que olhamos, não é necessária nem uma "paralaxe"...
Vejo isso em mim e na maioria das pessoas que têm um mínimo de senso crítico, isso é a cara da nossa cultura universitária...
E fica a questão, quem vai ficar renunciar aos confortos que a engrenagem capitalista proporciona para tentar mudar algo? Quem pode fazê-lo?