quarta-feira, 1 de abril de 2009

Topologia de Redes e Esquizoanálise

 Se Nietzsche matou Deus, a esquizoanálise matou o homem. Este para eles nada mais é que um Corpo sem Orgãos produzido subjetivamente a partir de agenciamentos continuamente intermediados por uma Máquina Abstrata paranóica. A partir desta perspectiva trazem a tona em sua obra conceitos como "nomadismo", "linhas-de-fuga", "desterritorialização" e "esquizofrenia", onde apresentam a condição da diferença, da multiplicidade, que havia sido dissimulada pelo pensamento moderno. Gilles Deleuze e Félix Guattari criaram formulações teóricas que entram no âmbito das relações entre poder e desejo que colocam-se entre o enunciado e a enunciação. Ao longo da sua série de livros intitulada Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, escrita no ano de 1980, apresentaram diversas ferramentas teóricas que servem para a compreensão da condição de totalitarismo, em que um déspota, através da ordem de seu fundamento discursivo, impõe sobre outros sua condição primaz.

As propostas topológicas, metáforas sobre condições discursivas, que eles propõem a partir dos conceptos de raiz, radícula e rizoma apresentam possibilidades interessantes ao embasamento epistemológico para análise de sistemas e, mais particularmente a nós que estamos pensando em Cibercultura, análise das redes.

A topologia da raiz alude a uma condição de totalitarismo, despotismo, que se exerce a partir da biunivocidade. "Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual." (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p.13) É uma condição que estabelece a continuidade de um eixo-tronco ao que ramifica-se dicotomicamente a partir dele e, ao partir dele, a ele retorna em sua continuidade. É uma condição de rigidez teórica e circularidade argumentativa, em que tudo no fim das contas "é porque é" através do retorno ao poder do eixo principal que é exercido sobre suas ramificações. A dicotomia é o exercício do poder totalitário que divide o mundo em ramos binários: os loucos e os normais, os dominadores e os dominados, o bem e o mal, o certo e o errado, o zero e o um. O pensamento cristão, por exemplo, estrutura-se topologicamente de maneira binária, como uma raiz.

De maneira próxima à raiz estaria a topologia da radícula, imagem da qual a modernidade se vale de bom grado. Um sistema fasciculado que visa aproximar-se da condição das multiplicidades, mas que não alcança nada além de um simulacro das mesmas. Quando se reduz uma multiplicidade a uma estrutura rígida, compensa-se seu movimento ao reduzir as suas leis de funcionamento.

Vale dizer que o sistema fasciculado não rompe verdadeiramente com o dualismo, com a complementaridade de um sujeito e de um objeto, de uma realidade natural e de uma realidade espiritual: a unidade não pára de ser contrariada e impedida no objeto, enquanto que um novo tipo de unidade triunfa no sujeito. O mundo perdeu seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo fazer dicotomia, mas acende a uma mais alta unidade, de ambivalência ou de sobredeterminação, numa dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto." (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p.14)

A condição de sujeito-objeto seria, de fato, um enclausuramento na lógica dual à medida que estão são duas dimensões suplementares. Reconhece-se aí o caos no mundo, mas o que se produz é uma imagem desse mundo à parte de qualquer movimento, qualquer devir. Produz-se agora o caosmo-radícula ao invés do cosmo-raiz. Trata-se de uma função que repete-se na variável, ela por ela mesma em todas as ocasiões excluindo tudo que esteja à sua margem, a unidade se repete no múltiplo, trata-se de n=1.

Os autores apresentam como seu próprio modelo uma anunciação da pós-modernidade, o concepto de rizoma, que dispõe-se a reconhecer as multiplicidades, os movimentos, os devires. A unidade estaria no múltiplo unicamente como uma subtração deste, como n-1. Ainda que possa arborificar-se em determinados momentos, o rizoma de forma alguma é uma arborificação. O rizoma, distintamente das árvores e suas raízes, conecta-se de um ponto qualquer a um outro ponto qualquer, pondo em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. Não deriva-se de forma alguma do Uno, nem ao Uno acrescenta-se de forma alguma (n+1). Não constitui-se de unidades, e sim de dimensões. O rizoma é feito de linhas: tanto linhas de continuidade quanto linhas-de-fuga como dimensão máxima, segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade metamorfoseia-se, mudando de natureza. O rizoma é o que já foi.

"Não se deve confundir tais linhas ou lineamentos com linhagens de tipo arborescente, que são somente ligações localizáveis entre pontos e posições. (...) O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso." (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p.32-33)

Os autores propõem o que se pode agrupar em dois tipos de sistemas: centrados e a-centrados. Os sistemas raiz e radícula podem ser classificados como centrados, privilegiando as estruturas arborescentes de ramificação hierárquica, em que cada indivíduo reconhece apenas seu vizinho ativo, seu superior hierárquico. A arborescência preexiste ao indivíduo e nela ele possui um papel fixo. A condição de repetição se instaura no sistema centrado quando as ramificações de seus galhos e suas raízes repetem-se também nas folhas, são sistemas necessariamente contínuos. As folhas são o decalque da árvore, que os articula e hierarquiza.

“Os autores assinalam a esse respeito que mesmo quando se acredita atingir uma multiplicidade, pode acontecer que essa multiplicidade seja falsa – o que chamamos tipo radícula – porque sua apresentação ou seu enunciado de aparência não hierárquica não admitem de fato senão uma solução totalmente hierárquica.” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p.27)

Em contraponto aos sistemas centrados, que privilegiam o centro, são apresentados os a-centrados, em que o privilégio é dos meios, dos intervalos, das ervas-daninhas entre as plantações tão cartesianamente organizadas. O rizoma é classificado como a-centrado, uma rede de autômatos finitos. A condição deste tipo de sistema é a de complexidade, em que não há um decalque, uma cópia de uma ordem central, mas sim múltiplas conexões que são estabelecidas a todo o momento, num fluxo constante de desterritorialização e reterritorialização. O problema proposto pelo rizoma é análogo ao da máquina de guerra, a Firing Squad: é necessário realmente um general para que os n indivíduos disparem simultaneamente?

O rizoma, como um sistema a-centrado, seria, portanto, a expressão máxima da multiplicidade em detrimento às outras duas condições apresentadas de raiz e radícula, que não expressam nada mais do que a proposta de um todo disciplinador, um totalitarismo estrutural.

Por: Victor Martins (victormnmartins@gmail.com)

3 comentários:

  1. Victor esse foi seu melhor texto sobre o tema, acho que sua síntese está muito bem feita... Esses autores sabemos bem, não têm muita voz em nossa vida acadêmica e no entanto suas idéias são fundamentais para a compreensão de nosso tempo...

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  3. Nunca compreendi bem Deleuze e Guatarri - também nunca os li (rs) -, mas acredito que não conseguiria lê-los sem experimentar um pouco de loucura...
    Sendo tão importantes para a compreensão do nosso tempo, acho que vale tentar relacionar seu pensamento a algo mais palpável, para mentes tão poucos aptas a tal filosofia como a minha.
    Tomando a Internet como fenômeno, em sua descentralização característica, vemos certamente um movimento de distanciamento deste totalitarismo, da 'raiz', em direção à muiltiplicidade. Entretando, o acesso à Internet é restrito por um meio único (aproximadamente) que não deixa de aludir à idéia de raiz - a saber, o "Personal Computer".
    Poderíamos afirmar, então, que a Internet, não alcançando o conceito de rizoma, estaria configurada como uma radícula?
    Poderíamos considerar que é um sistema centrado - no PC -, de forma a não possibilitar acesso universal?

    P.S.: O texto tá realmente muito bom.

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