Bom, fiquei sem postar a semana passada por não saber o que escrever ou não achar nada legal para compartilhar. Hoje estou na mesma, mas como a vida e o professor cobram, não me resta alternativa. Tentemos algo diferente.
Teste projetivo? Que nada, veja o perfil do Orkut
No tempo em eu que trabalhava com programação, lá pelos idos da década de oitenta, computador era um negócio grande, com tela verde e que só recebia comandos através de extensas linhas de códigos, que só faziam sentido para quem trabalhava com eles ou para quem sonhava em trabalhar com eles, alguns Nerds solitários. Depois que perdi o emprego na área de processamento de dados fui estudar psicologia e nunca mais cheguei perto de um computador. Li Marx, me formei, fui psicanalisado como todo bom psicólogo da minha geração, montei um consultório e passei a viver da clínica. Mas eis que de uns tempos pra cá o tal do computados surgiu novamente na minha vida.
Primeiro foi com Ana, uma adolescente de quinze anos. Ela chegou até mim encaminhada pela pedagoga da escola, que me comunicou naquela ocasião que a menina estava tendo sérios problemas de ajuste social, pois quase não conversava com ninguém na escola, a ponto do fato ser notado pelos professores e virar motivo de gracejos entre os alunos. Logo na primeira entrevista ela, sem que eu perguntasse, começou a falar sobre Internet, MSN, Orkut, comunidades virtuais... Falou que não se sentia de maneira nenhuma sozinha, pois todos os dias conversava horas e horas com pessoas do mundo todo. Sem compreender direito aquelas referencias simbólicas que ela me passava fui atendendo. Em outra consulta quando pedi para que ela falasse da sua passagem pela puberdade, algo entre os onze e trezes anos, no seu caso, ela me falou que isso não fora um problema muito grande porque ela sabia como tinha sido para um monte de amigas. Na pista dessas amigas tentei investigar suas relações com os grupos em que ela estava inserida, pra ver de que forma isso estava influenciando na construção da sua identidade. Ela começou a me falar que tinha afinidade com leitores de um tal de Tolkien, que prezava bastante pela ética dos aborígenes australianos e que assim que sua mãe deixasse ela se maquiar ela iria se sentir melhor, pois suas melhores amigas eram góticas londrinas e ela queria poder se sentir verdadeiramente parte “da galera” quando fosse para o intercâmbio na Inglaterra. Depois da Ana, as mesmas referências a esse mundo virtual surgiram nas falas de Joana, Gisele e João Henrique. Todos adolescentes entre treze e quinze anos de idade, filhos de pais separados com altíssimo poder aquisitivo.
Depois de mais ou menos um mês com esses pacientes suspendi os atendimentos a adolescentes, pois percebi que algo estava errado, não com os adolescentes, mas comigo. Era evidente que alguma coisa estava acontecendo, aqueles pacientes não estavam mais referencializando suas identidades em grupos sociais locais, mas sim em lugares que eu não fazia idéia de onde ficavam. Para eles era como se o mundo tivesse expandido de tal forma que as relações com seus pares próximos haviam se tornado não mais as essenciais, mas apenas mais uma das possíveis.
Como não tinha filhos naquela época, e mesmo se tivesse eles não teriam acesso àquelas referencias pois eu não era rico, fui conversar com alguns adolescentes filhos de amigos meus para ver se era um fenômeno generalizado. Não era. Pelo menos não para a classe média. Procurei alguns colegas e vi que apenas um havia passado por situação semelhante, e mesmo assim sem atribuir tanta importância. Fiquei mais calmo. Mas logo em seguida perdi a calma. Minha principal clientela era de adolescentes e crianças filhas de pessoas verdadeiramente ricas, como eu ia manter minha clientela se ela estava falando em um idioma que eu não conhecia. Pior, ela estava vivendo em uma cultura que estava direcionando a formação de sua identidade e eu não fazia a mínima idéia de como operar com a lógica ali presente.
E foi quando o computador voltou à minha vida. Procurei um amigo da época em que trabalhava com programação. Primeiro ele riu muito de mim, mas depois saímos para tomar algumas cervejas e ele me explicou por muitas horas o que era Internet, o tal do mundo virtual, me falou da revolução das janelas e de como ele achava que num futuro próximo não só os ricos estariam falando como meus pacientes, mas todas as pessoas do mundo. Claro que eu achei tudo aquilo um exagero, mas como eu precisava garantir meus trocados fiz um acordo com ele. Ele me ensinaria na prática a lógica do mundo virtual e em troca eu faria um acompanhamento psico-pedagógico à sua filha pequena, que estava tendo dificuldades de aprendizagem. Foi o melhor acordo que fiz na vida.
Depois de dois ou três anos as previsões do meu amigo se confirmaram, e vejam, eu estava na frente. Quando uma quantidade crescente de pais começou a bater na porta dos consultórios psiquiátricos e psicológicos atrás de ajuda para compreender seus filhos eu já estava a pleno vapor, atendendo a geração Internet. Não demorou para eu ganhar renome e agora posso cobrar três vezes mais por uma consulta, afinal ainda não existem muitos especialistas em adolescentes com crise de identidade-virtual.
Escrito e Postado Por Ítalo Mazoni
identidade
Muito legal seu relato, Ítalo.
ResponderExcluirFoi exatamente esse tipo de situação que eu tinha em mente quando comecei a me dedicar a estudar a cibercultura. A psicologia clínica ficou meio de lado pra mim, mas a idéia de psicólogos que não eram capazes de compreender seus efeitos me incomodava... Via muitos psicólogos aplicando conceitos freudianos típicos de uma sociedade completamente diferente, e tinha sérias dúvidas se eles se sustentariam na sociedade contemporânea...
adorei a história.
ResponderExcluirPor isso que ainda vou encontrar algum ramo obscuro, porém de futuro sucesso, para trabalhar =D
Gostei da sua narrativa.
ResponderExcluirMuito bom ter um conto para variar.